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Dr. House e a Mutilação Genital de crianças Intersexo

  • Foto do escritor: Lisandro Aqueronte
    Lisandro Aqueronte
  • 18 de fev. de 2024
  • 9 min de leitura

Atualizado: 2 de out. de 2024

A mutilação de crianças intersexo é um tema urgente, clama pela atenção social, por isso a representação deste fenômeno grotesco na série House causa indignação. Todos devem ter direitojk a integridade de seus corpos, inclusive as crianças que não têm como se defender da violência e ignorância da sociedade atual.


Pôster do Dr. House, um homem de barba e cabelo grisalhos com um dois Band-Aid tampando a boca formando um “X”. Ele  está ao lado da bandeira  intersexo, a bandeira consiste em um quadrado amarelo com um círculo roxo no centro.


Sumário

Prólogo: Precisamos Falar Sobre House 5x16


O episódio inicia com um médico, careca e de óculos, contra a janela o deixando numa zona escura.

“— Eu quero que fique sossegado, seu bebê pode ter uma vida completamente normal.”

“— Como um bebê pode ter DNA masculino e feminino?” — pergunta o pai confuso diante de uma condição natural da vida, porém como nunca teve conhecimento de tal fenômeno, se aterroriza.

“— É o que chamamos de mosaico genético…” — explica o médico: “— … a genitália ambígua pode ser reparada cirurgicamente.”

“— Reparada?” — indaga a mãe

“— Pra parecer mais típica” — diz o médico

“— Mais típica? —” indaga a mãe ainda confusa “— Mas você não disse ainda se é menino ou menina?” — diz a mãe que até o momento jamais teve contato com o sexo humano para além do binarismo: macho e fêmea. Duvido até que saiba a diferença de gênero, sexualidade e sexo. E o que fazer neste momento de dúvida? Oras, confiar em alguém que sabe mais, ou para o infortúnio da criança, que acreditar que saber mais.

“— É uma escolha que vão ter que fazer.” — concluir o médico condenando o bebê a uma mutilação, o privando do direito de escolha, do direito ao próprio corpo.



Dr. House de terno num fundo branco, usando a bengala como se fosse uma guitarra, ao seu lado está a frase: “Se você fala com Deus, você é religioso. Se Deus fala com você, você é psicótico.” Dita pelo médico na segunda temporada, episódio 19: House vs. Deus.


A série Dr. House (House, M.D. uma obra de drama e comédia criada por David Shore) foi um grande sucesso em sua época trazendo uma releitura do clássico Sherlock Holmes na figura de um médico amargurado e viciado em Vicodin. Cada episódio trazia uma investigação entorno de uma doença misteriosas. Ele marcou minha adolescência, não perdia um episódio e ainda unia minha família para ver o adorável e rabugento dr. Gregory House solucionando casos insanos.


Dr. House de camisa preta em um fundo preto segurando um cérebro com as mãos nuas, ao seu lado a frase: “não é lúpus” dita praticamente em todos os episódios da série.


Não pense que quero jogar hater na séria, recentemente reassistir as oito temporadas e digo que ela continua memorável com episódios ímpares, porém não é perfeita, alguns erros são irrelevantes e outros precisam ser revisitados e elucidados como é o caso do episódio dezesseis da quinta temporada: O Lado Mais Suave, “The Softer Side”.

Como dito antes o episódio abre com o médico “obrigando” os pais a fazer um procedimento cirúrgico no bebê, mas na vida real isso é errado, um equívoco da medicina tal como a lobotomia foi em outrora. Essa página negra da história precisa ser mudada, o direito ao próprio corpo da criança deve ser respeitado e as mutilações precisam para. Mas para que você compreenda o tamanho deste erro, vamos para o começo, a pergunta mais primaria e fundamental a se fazer:


I. O Que É Uma Pessoa Intersexo?


Bandeira intersexo, um quadrado amarelo com um círculo roxo no centro.
Bandeira intersexo, Suas cores foram escolhidas por no passado estarem associadas ao hermafroditismo, termo usado antigamente para se referir a pessoas intersexo, e por não serem associadas a nenhum papel de gênero. Além disto o círculo representa totalidade, completude e as potencialidades.


“Uma definição objetiva de Intersexo, feita pela Intersex Human Rights, sitiada na Austrália, define as pessoas Intersexo como as que têm características sexuais congênitas, não se enquadrando nas normas médicas e sociais para corpos femininos ou masculinos, e que criam riscos ou experiências de estigma, discriminação, ódio e danos.
“Essa definição é compartilhada pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. A declaração baseia-se em uma definição de características sexuais.
“Baseada nos Princípios de Yogyakarta mais 10, definem-se as características sexuais como sendo características físicas relacionadas ao sexo, incluindo cromossomos, órgãos genitais, gônadas, hormônios e outras anatomias reprodutivas, e características secundárias que aparecem na puberdade.” (I)

Essas pessoas não são aberrações, são pessoas que apresentam características de macho e fêmea, lembrando que sexo e gênero são coisas diferentes.


“Pode-se dizer que sexo está relacionado às distinções anatômicas e biológicas entre homens e mulheres. O sexo é referente a alguns elementos do corpo como genitálias, aparelhos reprodutivos, seios, etc.(…)
“Gênero é o termo utilizado para designar a construção social do sexo biológico. Este conceito faz uma distinção entre a dimensão biológica e associada à natureza (sexo) da dimensão social e associada à cultura (gênero). Apesar das sociedades ocidentais definirem as pessoas como homens ou mulheres desde seu nascimento, com base em suas características físicas do corpo (genitálias), as ciências sociais argumentam que gênero se refere à organização social da relação entre os sexos e expressa que homens e mulheres são produtos do contexto social e histórico e não resultado da anatomia de seus corpos.” (II)

Luiz Antonio Guerra, Doutorado em Sociologia (USP, 2021);

Mestre em Sociologia (UnB, 2014);

Graduado em Ciência Política (UnB, 2010)





Dentro do aspecto da intersexualidade, nem todas as pessoas vão apresentar características tão marcantes de ambos os sexos, essa é uma situação complexa e existem muitos nuances, veja o exemplo do…


                                                                                                                                    

Se você leu a notícia viu que o caso fala da síndrome do ducto mulleriano persistente e se você quiser saber mais sobre, recomendo esse vídeo da pesquisadora Dionne Freitas:




Espero que entenda que fiz essa longa apresentação para dar uma visão mais ampla do que e uma pessoa intersexo e das suas possibilidades do ser. E antes de voltamos ao tema central deste artigo, a mutilação genital infantil de crianças intersexo, permita-me elucidar uma pergunta que as pessoas sempre me fazem quando ao falo sobre o tema:


I. I. Intersexos são Hermafroditas?


Sim e não, o primeiro ponto a ser esclarecido é que o termo hermafrodita deve ser evitar no trato para humanos, pois carrega um caráter pejorativo, portanto, devemos evitar a usar essa expressão para seres humanos.

Agora voltando para o lado científico, essa é uma pergunta tão recorrente que a própria ABRAI já fez um post respondendo essa questão:


“Hermafrodita é uma pessoa que tem uma condição congênita onde há presença de testículo e ovário, ou ovotestis, com presença ou não de genitália ambígua. Intersexo é o termo generalista que enbloda todas as condições biológicas que não se enquadram nas definições médicas de macho e fêmea, sendo hermafrodita, apenas uma delas. (…) Em Resumo, todo Hermafrodita é Intersexo, mas nem todo Intersexo é Hermafrodita.” (IV)


Outra dúvida que talvez não seja obvia e vale apena mencionar: geralmente as pessoas que nos odeiam tendem a interpretar toda a comunidade como gays. E como essas vozes têm mais alcance (até quem não nos odeia provavelmente nos conhecerá pela óptica LGBTfobica) vale apena elucidar a questão:


I. II. Pessoas Intersexo são Homossexuais?


A intersexualidade está relacionada ao sexo biológico e esse por sua vez não reflete a orientação sexual, sendo assim uma pessoa intersexo pode ser hétero, homossexual, bissexual, pansexual, assexual e etc.

Bem, espero ter esclarecido que…


I. III. Pessoas Intersexo são normais


Elas acontecem, fazem parte das muitas possibilidades do ser humano. E que se você tiver um filho intersexo, não precisas entrar em pânico e nem tratar isso como um bicho de sete cabeças.

Afinal de contas, a compreensão desses fenômeno é importante para o próximo passo:


II. O Combate à Mutilação Genital Infantil




Aqui voltamos ao House e a cena de abertura. Se o bebê tem a genitália saudável e não apresenta nenhuma nescidade médica real, então não cabe aos pais tomarem esta decisão pela criança. Ao longo do crescimento ela tomará noção de si e a própria dirá o que é. Quem melhor do que você pra decidir sobre o seu próprio corpo, não é mesmo?

Nesta situação há a necessidade por parte dos médicos e especialistas em promover o acolhimento tanto da criança quanto dos pais para os instruir da melhor maneira possível a lidar com a situação. A conscientização de profissionais e familiares é sempre o melhor caminho em vez de força um gênero em um individuo em formação. Quantos casos iguais ao do David Reimer (1) será necessário para que compreendemos o obvio: é impossível força um gênero no qual a pessoa não se identifica.

E como se isso já não fossem o suficiente devemos ainda relembrar os possíveis efeitos colaterais da cirurgia:


"Os procedimentos realizados em crianças obviamente não consideram a autonomia delas ao seu corpo e, muitas vezes, nem mesmo a família sente-se bem esclarecida quanto à real necessidade de realizá-los e de outras opções. As sequelas corporais permanentes que costumam ser geradas (infertilidade, dores, incontinência urinária, perda de prazer e sensibilidade sexual cicatrizes) precisam ser consideradas juntamente aos sofrimentos mentais, muitas vezes vinculados a sentimentos de vergonha e necessidade de sigilo, que permanecem ao longo da vida e aumentam transtornos depressivos e ideação suicida. Embora a legislação brasileira ainda não tenha avançado muito nos direitos de pessoas intersexo, movimentos de direitos humanos ao redor de todo o mundo defendem que cirurgias e demais tratamentos desnecessários e não solicitados devam ser proibidos" (IV)

O conhecimento sobre a intersexualidade é de suma importância para evitar dores desnecessárias a quem amamos além de prevenir preconceitos futuros quando expandimos essas informações ao público geral.


“A abordagem sobre intersexualidade deve começar ainda durante o pré-natal (pois é função de profissionais de saúde abordar expectativas das famílias em relação à criança, inclusive em relação aos papéis de gênero), o que inclui os direitos da pessoa parturiente e da criança. Quando a intersexualidade já é esperada, cabe planejar o momento do parto e pós-parto e as possíveis abordagens da equipe hospitalar. É importante orientar que traços ou características intersexo não são necessariamente más-formações e que todas as intervenções cirúrgicas não urgentes devem ser adiadas, inclusive gonadectomias justificáveis pelo risco de desenvolvimento tumoral maligno.” (IV)

Da comunidade LGBTQIAPN+ essa é a letra da sigla mais fragilizada e ignoradas, afinal, são a minoria das minorias. Porém não são invisíveis e suas dores são as nossas também, nos últimos anos a luta pela comunidade intersexo vem crescendo, veja o exemplo de…


II. I. O Projeto de Lei 5687/2023 – Dia Nacional de Combate à Mutilação Genital Infantil é protocolado no portal da Câmara dos Deputados


Imagem com duas fotos colocadas uma do lado da outra: à esquerda a deputada  Duda Salaber em um falando na Câmara dos Deputados. A foto à direita é do seu assessor Thiago Coacci sorrindo.
À esquerda a deputada Duda salaber (PDT) se pronunciando na câmara dos deputados. À direita o seu assessor Thiago Coacci (advogado e cientista político).


A deputada a Duda Salabert, seu assessor Thiago Coacci, junto a Associação Brasileira Intersexo (ABRAI), protocolaram um projeto de lei que visa a criação do dia nacional do combate à mutilação infantil. (V) O objetivo da data é o mesmo que estou fazendo aqui: trazer à sociedade o conhecimento da existência das pessoas intersexo e dos perigos que essa população corre. Falando em perigos, sabia que a data escolhida para o dia da conscientização tem um forte valor simbólico:


“A escolha da data para o dia 26 de setembro se dá em memória de Jacob Christopher, criança intersexo nascida neste dia no ano de 2016, na cidade de São José do Rio Preto – SP. Sua história ficou nacionalmente conhecida graças à luta pública de seus pais contra as diversas tentativas de intervenções cirúrgicas que sofreu no decorrer da vida.”

                      


Se você quiser saber mais sobre a luta intersexo ou tiver mais dúvidas referentes a estas questões, te convido a conhecer a…


II. II. Associação Brasileira Intersexo (ABRAI)



Logo da ABRI: uma orquídea branca sobre um fundo roxo com a inscrição abaixo: ABRAI, A Associação Brasileira Intersexo.

Nascida do ano de 2018 com o objetivo de trazer conhecimento e vivibilidade à causa intersexo, inclusive foi através dela que encontrei a maior parte das informações deste artigo.


“A ABRAI trabalha em ações operacionais e programáticas, com foco na conscientização sobre as variações sexuais e as questões intersexo, defendendo políticas públicas de inclusão Intersexo no Brasil e promovendo campanhas de solidariedade para apoiar pessoas Intersexo vulneráveis no Brasil.”(VI)


Também foi através dela que conheci várias pessoas intersexo e descobrir os problemas que assolam essa parte da comunidade.

E é baseado nisto tudo que eu digo e repito:


III. É Sempre Importante Discutir A Intersexualidade





 

Nota

1. David Reimer (22 de agosto de 1965 – 5 de maio de 2004). Infelizmente a vida de David é mais uma das evidências das estupidez que é força um gênero em uma criança. Esse menino entrou para a história por ser vítima de um experimento cruel e sem autorização dele: quando bebê teve o pênis acidentalmente destruído durante uma circuncisão. O psicólogo John Money querendo provar o seu ponto (que a sexualidade é aprendida no decorrer do desenvolvimento e não uma coisa que nasce com você) convenceu os pais a fazerem uma cirurgia para a remoção total dos genitais do menino e a criá-lo como uma menina. O experimento foi um fracasso, David não se identificava como menina e passou a viver como homem aos 15 anos, sua história chega tragicamente ao fim aos 38 anos quando comete suicídio por não suportar o sofrimento a qual a experiência o submeteu.



 


Referências:

I. O que é ser Intersexo. ABRAI, Disponível em: <https://abrai.org.br/informacoes-e-recursos/definicao-de-intersexo/>. Acesso em: 17 fev de 2024.

II. SEXO, gênero e sexualidade. Infoescola, 2006 – 2024. Disponível em: <https://www.infoescola.com/sociologia/sexo-genero-e-sexualidade/>. Acesso em: 17 fev de 2024.

III. HOMEM de 67 anos faz cirurgia de hérnia e médicos descobrem que ele tinha útero e ovário. O Globo, 23 jan. 2022. Saúde. Disponível em <https://oglobo.globo.com/saude/homem-de-67-anos-faz-cirurgia-de-hernia-medicos-descobrem-que-ele-tinha-utero-ovario-25364683>. Acesso em: 17 fev de 2024.

IV. PERGUNTAS Frequentes. ABRAI, As informações presentes foram retiradas das seguintes perguntas em ordem de aparecimento no texto: Qual a diferença entre hermafrodita e intersexo? É melhor que crianças intersexo sejam operadas logo ao nascer e que nunca saibam de sua intersexualidade? Disponível em: <https://abrai.org.br/informacoes-e-recursos/perguntas-frequentes/>. Acesso em: 17 fev de 2024.

V. VITÓRIA Intersexo: Projeto de Lei 5687/2023 – Dia Nacional de Combate à Mutilação Genital Infantil é protocolado no portal da Camara dos Deputados. ABRAI, Disponível em: <https://abrai.org.br/vitoria-intersexo-projeto-de-lei-5687-2023-dia-nacional-de-combate-a-mutilacao-genital-infantil-e-protocolado-no-portal-da-camara-dos-deputados/>. Acesso em: 17 fev de 2024.

VI. AÇÕES da ABRAI. ABRAI, Disponível em: <https://abrai.org.br/sobre-a-abrai/acoes-da-abrai/>. Acesso em: 17 fev de 2024.

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